quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Notícias sobre a tragédia em Santa Maria

Médicos dão o testemunho do drama depois da tragédia


O pneumologista Edson Nunes, um dos médicos que atendem os jovens feridos na tragédia da boate Kiss, não conseguiu segurar as lágrimas ao falar sobre o estado de seus pacientes no Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo, localizado no centro de Santa Maria. Sentado à mesa, com roupa à paisana e um estetoscópio enrolado no pescoço, pronunciou as primeiras palavras da entrevista com a voz embargada e os olhos marejados, mas se segurou e continuou a conversa. No fim, no entanto, o choro não pôde ser contido, e levantou-se abruptamente, desculpando-se, e sem conseguir se despedir. Mesmo os médicos, habituados a situações difíceis no cotidiano hospitalar, têm se rendido às emoções provocadas pela cruel realidade das Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), onde se encontram os jovens feridos em estado crítico.
— A pior coisa do mundo é um pai enterrar o filho — diz Nunes, ao lembrar que há três semanas um de seus filhos esteve na Kiss.
Apesar de experiente, com cabelos grisalhos, o médico conta com ar espantado como um dos três pacientes de sua UTI, uma das cinco que possui o hospital, tem reagido à fuligem alojada em seus pulmões:
— Ele já expeliu quase meio copo pequeno de picumã (uma espécie de fuligem), sai aquilo preto, sai na tosse.
O sintoma é consequência de uma pneumonite química, causada pela inalação de fumaça e de fuligem nos pulmões, a principal preocupação dos médicos em relação aos feridos. Nunes relata o caso de um amigo, que ao exagerar na hora de tentar acender um churrasco, aspirou fumaça, e queimou sua árvore brônquica.
— São poucos os que apresentam queimaduras externas, e a grande maioria é sem gravidade. Mandamos dois pacientes para Porto Alegre, um deles com 30% da superfície do corpo queimada. E são todos guris, umas crianças, entre 20 e 25 anos — volta a lamentar, também abalado pela morte do filho de uma enfermeira do hospital, que estava no incêndio com a namorada.
Primeiro caso de insuficiência renal
Muito além da tosse negra, a pneumonite química pode causar infecções oportunistas — que se aproveitam do frágil mecanismo de defesa do doente —, desidratação, insuficiência renal e dificuldades respiratórias, pela incapacidade na troca de CO2 por oxigênio.
— Aqui numa UTI já tivemos o primeiro caso de insuficiência renal — conta ele.
Segundo o médico, as primeiras 72 horas são fatais para pessoas que inalaram fuligem, que se sentem bem, mas que poderão piorar nesse período.
— Acredito que a maioria dos jovens que tinham que apresentar alguma complicação já o fizeram. Alguns se assustam com uma tosse e vêm ao hospital, angustiados, e os mantemos aqui para acalmá-los, mesmo que não apresentem sintomas de pneumonite.
Edson Nunes contou que no dia em que chegou ao hospital para atender os primeiros feridos no incêndio, foi cumprimentar um colega, com quem havia se formado na faculdade, e então soube que o filho dele havia morrido na tragédia. Ao lembrar desse momento, desabou em lágrimas, e interrompeu repentinamente a entrevista.
Coordenadora das UTIs do Hospital Caridade, Cristina Boeira é solicitada a toda hora pelos médicos e enfermeiras. Segundo ela, dois jovens haviam sido internados na noite anterior com sintomas de tosse que sinalizam uma pneumonite. Ele evita fazer prognósticos sobre as chances de seus pacientes.
— Por enquanto, o estado é crítico e estacionário. Atualmente, 19 necessitam um cuidado maior — disse, sem entrar em mais detalhes.
O médico Henri Pansarde, especialista em problemas de rins, soube da tragédia pelo Facebook logo cedo pela manhã de domingo, e sem pensar correu para o Centro Esportivo Municipal, o Farrezão, para onde foram levados os corpos das vítimas do incêndio, para auxiliar no que fosse possível e também se cadastrar para o atendimento dos feridos.
Ao adentrar no recinto em que estavam estendidos os corpos, confessa que teve que pedir ajuda.
— Quis entrar junto com um psiquiatra, no caso de precisar de algum suporte na hora. Mesmo para nós, médicos, que estamos acostumados com a morte, era uma situação diferente.
O médico ajudou parentes no reconhecimento das vítimas, e admitiu que foram momentos bastante difíceis.
— Nunca vou me esquecer de uma jovem que possuía uma tatuagem no braço, mas que era impossível de ver por causa de queimaduras, e o rosto estava preto de fuligem, com a boca desfigurada. A família não pôde reconhecê-la, e teve de ser levada para identificação por papiloscopia.
Em outro caso, conta ele, uma menina se recusava a identificar o irmão, voltou e pediu para vê-lo novamente, não querendo acreditar que estava morto.
— Depois de cinco ou seis horas lá dentro, tive que dar uma saída — disse.
Seu filho, igualmente médico, trabalha no Hospital Universitário de Santa Maria, que também acolhe feridos do incêndio na boate Kiss.
— Lá também há casos de infecções por inalação de fumaça. E, desde o dia da tragédia, 25 jovens já foram internados tardiamente com sintomas de pneumonite. Não dá para imaginar o que essas pessoas viveram dentro daquela boate.

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Para juristas, donos da boate Kiss deverão responder por crime de homicídio culposo

Especialistas em Direito ouvidos pelo GLOBO afirmam que tudo indica que os responsáveis pelo incêndio da boate Kiss cometeram o crime de homicídio culposo (quando não há intenção de matar). Neste caso, se forem condenados, pegariam no máximo quatro anos e meio de detenção. Os juristas acreditam, no entanto, que vai haver um debate na Justiça sobre se caso é de homicídio culposo ou de homicídio doloso, que prevê penas maiores.
O homicídio culposo fica caracterizado quando há negligência, imprudência ou imperícia do autor do crime e quando não houve a intenção de matar. No entanto, segundo o professor de Direito da PUC-SP Carlos Kauffmann, o Ministério Público pode entender que o caso foi de homicídio doloso caso vislumbre a presença do dolo eventual. O dolo eventual ocorre quando o acusado assume, conscientemente, o risco de o resultado (no caso da Kiss, a morte e a lesão corporal) acontecer. E ainda: apesar de não querer o resultado, o acusado não vê nenhum problema nisso, caso ele aconteça.
Na opinião do advogador e professor da Faculdade de Direito Penal da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) Filipe Fialdini, o dolo eventual presume que houve uma indiferença do autor em relação ao resultado da sua conduta. Para Fialdini, aparentemente não foi o que aconteceu no caso dos sócios da boate Kiss, pois um deles estava na casa noturna e se feriu no incêndio.
— Não me parece que houve essa indiferença porque os proprietários da boate estavam na boate. Um deles até foi internado. Seria um dolo eventual de suicídio? Ele queria se suicidar? Não acho que seja o caso. A mesma coisa acontece com relação aos integrantes da banda. Nada indica que eles queriam se suicidar. Então não acho que seja o caso de dolo eventual. Tudo indica que o crime é culposo — Filipi.
Para o advogado e professor da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) Roberto Soares Garcia, em casos muito graves, há uma tendência de as pessoas desejarem enquadrar a situação no caso de dolo e não de culpa, para que a pena seja mais alta.
— Uma omissão de dever de cuidado, ainda que muito intensa, não vira dolo eventual. Se os proprietários descuidaram de uma regra, eles podem ser condenados por crime culposo, ainda que a culpa seja intensíssima. A menos que haja uma reviravolta, este é um caso de crime culposo — disse Garcia.
Segundo Garcia, caso sejam condenados por homicídio culposo, os responsáveis podem pegar pena de no mínimo 1 ano e dois meses até 4 anos e meio, já considerando neste total as 231 mortes e todas as lesões corporais. De acordo com o professor da FGV-SP, isso significa que eles podem ter que cumprir pena alternativa (prestando serviços à comunidade, por exemplo) ou ficarem presos em regime semiaberto.
Em um caso semelhante à da boate Kiss, os condenados pelo incêndio da casa noturna Canecão Mineiro, em Belo Horizonte — em que sete pessoas morreram e 300 ficaram feridas em 2001 — tiveram que cumprir pena de prestação de serviço à comunidade.
O jurista Roberto Delmanto Júnior acredita que é provável que o Ministério Público tente enquadrar os responsáveis pelo incêndio por crime com pena maior que o homicídio culposo — como o de incêndio com dolo eventual que teve como resultado homicídios culposos — cuja pena pode chegar a 20 anos de prisão. O professor de Direito da PUC-SP Carlos Kauffmann disse que o fato de ter sido pedida a prisão de sócios da Kiss e de integrantes da banda é uma sinalização que o MP analisa a possibilidade de ter havido dolo eventual no caso.
De acordo com os juristas, é muito difícil punir algum integrante da administração pública (seja do Corpo de Bombeiros, seja da prefeitura de Santa Maria) criminalmente pelo incêndio e pelas mortes, apesar de isso ser possível. Segundo Delmanto Júnior, é preciso provar que o integrante do poder público era omisso e consciente dos riscos. A simples omissão e não fiscalização da boate não é o suficiente.
— A omissão precisa ser consciente. Para poder imputar um crime grave como esse a um funcionário público é preciso provar que ele esteve lá, fez a vistoria, viu que havia perigo e mesmo assim fechou os olhos e deixou o local funcionar. Não é simplesmente “não foi ver porque tem excesso de trabalho” — diz Delmanto Júnior.
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Fonte: O Globo

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