Um instante para a poesia

Murmúrio (Cecília Meireles)

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no seu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
-vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!


Soneto (Félix Arvers)

Tenho n'alma um segredo e um mistério na vida:
é este amor imortal gerado num momento;
sufoco-o, pois não espera alívio o meu tormento
- e não vê, quem o causa, a minha alma dorida!

Por ela, - ai! - passarei, sombra despercebida,
sempre a seu lado e sempre só, e em desalento!
E hei de findar, morrer neste martírio lento,
sem pedir, sem ousar, sem uma graça obtida.

Embora doce e terna, essa que me alanceia
irá continuando o seu caminho, alheia
a este amor que em murmúrio a segue onde ela vá.

Presa ao dever, tranqüila, honestamente bela,
talvez pergunte, ao ler versos tão cheios dela:
"que mulher será esta?" - e não compreenderá.


Canção do meu sonho errante (Menotti Del Picchia)

Eu tenho a alma errante
e vago na terra a sonhar maravilhas...
Não paro um momento!
Eu busco irrequieto o meu sonho inconstante
e sou como as asas, as velas as quilhas,
as nuvens, o vento...

Eu sou como as coisas inquietas: o veio
que canta na leira; a fumaça que voa
na espira que sobe das achas; o anseio
dos longos coqueiros esguios;
a esteira de prata que deixa uma proa
no espelho dos rios.

Eu tenho a alma errante...

Boêmio, o meu sonho procura a carícia
fugace, procura
a glória mendaz e preclara.
Sou como a vela fenícia
ao largo, uma vela distante...

Eu tenho a alma errante...

E sinto uma estranha delícia
em tudo que passa e não dura,

em tudo que foge e não pára...


Desilusão (Menotti Del Picchia)

E que é amar? A estranha dor
de estilhaçar a alma em carinho...
É colher ao acaso alguma flor
para despetalá-la no caminho.

E que resta depois de tantos ais?
A saudade? Talvez... Ó alma enganada,
de ti e da flor não resta quase nada:
um punhado de pétalas na estrada,
um perfume nos dedos... - Nada mais


Humilde súplica (Menotti Del Picchia)

Eu pediria, senhor, um crepúsculo tranqüilo.

Que delícia não ter mais nada que arrancar à alma
perder o tato para a carícia
e na boca neutra sentir inapetência
por todos os vinhos.

Eu já disse adeus a muitas coisas
mas de outras inda custa despedir-me.

Senhor, dai-me a ventura de ver descer a noite
sem me importar com as estrelas.

O tempo me dissolveu nas horas
e a treva e o silêncio já estão cheios de mim.

Nada me falta. Tenho tudo que já tive.

Deixai-me agora quieto
ouvindo com volúpia
um murcho cair de pétalas
de uma roseira que não dará mais rosas.


O vôo (Menotti Del Picchia)

Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas tempo e vento
desabam no abismo.

Que sabes tu do fim?

Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.
Conserva a ilusão de que teu võo te leva sempre para o mais alto.

No deslumbramento da ascensão
se pressentires que amanhã estarás mudo
esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta.
Canta. Canta para conservar uma ilusão de festa e de vitória.

Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.

Desde que nasceste não és mais que um vôo no tempo.

Rumo do céu?

Que importa a rota.

Voa e canta enquanto resistirem as asas.


Poema XX (Pablo Neruda)

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever por exemplo: "A noite está estrelada,
e tirintam azuis, os astros, ao longe".

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a amei, e às vezes ela também me amou.

Em noites como esta eu a tive entre os meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela me amou, às vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Que importa que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se contenta com tê-la perdido.

Como para aproximá-la o meu olhar a procura.
Meu coração a procura e ela não está comigo.


Versos íntimos (Augusto dos Anjos)

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Um pássaro menor (Robert Frost)

Quis, de fato, que o pássaro voasse
E próximo ao meu lar não mais cantasse.

Cheguei à porta para afugentá-lo,
Por sentir-me incapaz de suportá-lo.

Penso que a inteira culpa fosse minha
E não do pássaro ou da voz que tinha.

O erro estava, decerto, na aflição
De querer silenciar uma canção.


O corvo (Edgar Allan Poe)

Certa vez quando, à meia-noite, eu lia, débil, extenuado,
um livro antigo e singular, sobre doutrinas do passado,
meio dormindo, - cabeceando, ouvi uns sons, trêmulos, tais
como se leve, bem de leve, alguém batesse à minha porta.
"É um visitante", murmurei, "que bate, leve à minha porta".
                                                                      "Apenas isso, e nada mais".

Bem me recordo! Era em dezembro. Um frio atroz, ventos cortantes...
Morria a chama no fogão, pondo no chão sombras errantes.
Eu nos meus livros procurava, - ansiando as horas matinais, -
um meio (em vão!) de amortecer fundas saudades de Lenora,
- virgem radiante, a quem, no céu, os querubins chamam Lenora,
                                                                   e aqui, ninguém chamará mais.

E das cortinas cor de sangue, o arfar soturno, e brando, e vago,
causou-me horror nunca sentido, - horror fantástico e pressago.
Então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)
a repetir "É alguém que bate, alguém que bate à minha porta;
"algum noturno visitante, aqui, batendo à minha porta;
                                                                       "é isso! é isso e nada mais!"

Fortalecido já no fim, brado, perdendo a hesitação:
"senhor! senhora! quem sejais! Se demorei peço perdão!
"Eu dormitava, fatigado, e tão baixinho me chamais,
"bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha porta,
"que não é fácil escutar". Porém, só vejo, abrindo a porta,
                                                                             a escuridão, e nada mais.

Perquiro a treva, longamente, estarrecido, amendrontado,
sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonhado.
Silêncio fúnebre! Ninguém! De visitante nem sinais.
Uma palavra, apenas, corta a noite plácida: - "Lenora!"
Digo-a em segredo e, num murmúrio, o eco repete-me: - "Lenora!"
                                                                       Isto, somente, - e nada mais.

Para o meu quarto eu volto enfim, - sentindo n'alma estranho ardor,
e novamente ouço bater, ouço bater com mais vigor.
"Vêm da janela", presumi, "estes rumores anormais".
"Mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.
"Fica tranqüilo, coração! Perscruta, calmo, este mistério.
                                                                 "É o vento, o vento e nada mais!"

Eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de fora,
um Corvo grande, ave ancestral, dos tempos bíblicos, - d'outrora!
Sem cortesias, sem parar, batendo as asas noturnais,
ele, com ar de grão senhor, foi, sobre a porta do meu quarto,
pousar num busto de Minerva, - e sobre a porta do meu quarto
                                                                    quedou, sombrio, e nada mais.

Eu estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno
tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno.
"Sem crista, embora" - ponderei - "embora ancião dos teus iguais.
"não és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho errante de Plutão!
"Que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de Plutão?"
                                                                 E o Corvo disse: Nunca mais!"

Fiquei surpreso - pois nunca imaginei fosse possível
ouvir de um corvo tal resposta, embora incerta, incompreensível.
E creio bem, que em tempo algum, em noite alguma, entes mortais
viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta,
e declarar (do alto de um busto, erguido acima de uma porta)
                                                                      que se chamava "Nunca mais".

Porém o Corvo, solitário, estas palavras só murmura,
como que nelas refletindo uma alma cheia de amargura.
E fica imóvel, silencioso, inerte sobre os meus umbrais,
até que exclamo em flébil  voz: "Outros amigos me fugiram...
Tu fugirás pela manhã, como os meus sonhos me fugiram!"
                                                              Responde o Corvo: "Nunca mais".

Pasmo, ao varar o atroz silêncio uma resposta assim tão justa,
e digo: "certo, ele só sabe essa expressão com que me assusta.
"Ouviu-a, acaso, de algum dono, a quem desgraças infernais
"hajam seguido, e perseguido, até cair nesse estribilho,
"até chorar as ilusões com esse lúgubre estribilho
                                                             de - "nunca mais! oh nunca mais! -"

De novo foram mudando as minhas mágoas num sorriso...
Então, rodei uma poltrona, olhei o Corvo, de improviso,
e me afundei aí a cismar, fazendo cálculos mentais
sobre a intenção que essa longeva, essa medonha ave agoureira,
- rude, sinistra, repulsiva e macilenta ave agoureira, -
                                                                     tinha, grasnado "nunca mais".

Mil coisas vagas pressupus... Não lhe falava, mas sentia
que me abraçava o coração o duro olhar da ave sombria.
... E assim fiquei, num devaneio, em deduções conjeturais,
minha cabeça reclinando, - à luz da lâmpada fulgente,
nessa almofada de veludo, em que ela, agora, - à luz fulgente,
                                                          não mais descansa, - ah, nunca mais!

Subitamente o ar se adensou, qual se em meu quarto solitário,
anjos pousassem, balançando um invisível incensário.
"Ente infeliz" - eu exclamei. Deus apiedou-se dos teus ais!
"Calma-te! calma-te e domina essas saudades de Lenora!
"Bebe o nepente benfazejo! Olvida a imagem de Lenora!"
                                                                   E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Profeta!" - brado. "anjo do mal! Ave ou demônio irreverente
"que a tempestade, ou satanás, aqui lançou, tragicamente,
"e que te vês, soberbo e só, nestes desertos penetrais,
"nesta mansão de eterno horror! Fala! Responde ao certo! Fala!
"Existe bálsamo em Galaad? Existe? Fala, ó Corvo! Fala!"
                                                                    E o Corvo disse: "nunca mais!"

"Profeta!" - brado. "Anjo do mal! Ave ou demônio irreverente,
"dize, por Deus que está nos céus! Dize! eu t'o peço ardentemente!
"dize a esta pobre alma sem luz, se lá nos páramos astrais
"há de abraçar, um dia, ainda, a bela e cândida Lenora,
"virgem radiante, a quem, no céu, os querubins chamam Lenora!"
                                                                 E o Corvo disse: "Nunca mais!"

"Seja essa frase o nosso adeus!" - grito, de pé, com aflição.
"Vai-te! Regressa à tempestade, à noite escura de Plutão!
"Não deixes pluma que recorde essas palavras funerais!
"Mentiste! Sai! Deixa-me só! Sai desse busto junto à porta!
"Tira o teu bico do meu peito, e o vulto teu da minha porta!"
                                                                 E o Corvo disse: "Nunca mais!"

E não saiu! E não saiu! Ainda hoje se conserva
pousado, trágico e fatal, no busto branco de Minerva.
Negro demônio sonhador, seus olhos são como punhais!
Por cima, a luz, jorrando, espalha a sombra dele, que flutua...
E a alma infeliz, que me tombou dentro da sombra que flutua,
                                                             não há de erguer-se, - nunca mais!


Fanatismo (Florbela Espanca)

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
De uma boca divina fala em min!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim...!"


Via Láctea (Olavo Bilac)


Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouví-las, muita vez desperto,
E abro as janelas, pálido de espanto.

E conversamos toda a noite enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E ao vir do Sol, saudoso e em pranto
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Têm o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "amai para entedê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender estrelas."





Recuso os sonhos que te ignoram (Rainer Maria Rilke)


Recuso os sonhos que te ignoram
e os desejos que não possas despertar.
Não quero fazer um gesto que não te louve,
nem cuidar uma flor que não te enfeite;
não quero saudar as aves que ignoram o caminho da tua janela,
nem beber em ribeiros que não tenham acolhido o teu reflexo.
Não quero visitar países que os teus sonhos não tenham percorrido
como taumaturgos vindos de fora, nem habitar cabanas
que não tenham abrigado o teu repouso.
Nada quero saber de quem te precedeu em meus dias,
nem dos seres que aí permanecem.

A fonte e a flor (Vicente Carvalho)


"Deixa-me, fonte!" Dizia
a flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar."

E a fonte, rápida e fria,
com um sussurro zombador
por sobre a areia corria,
corria levando a flor.

"Ai balanço do meu galho,
"Balanço do berço meu;
"Ai claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!...

Chorava a flor, e gemia
branca, branca de terror,
e a fonte, sonora e fria
rolava levando a flor.

"Adeus sombras das ramadas,
"Cantigas do rouxinol,
"Ai festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr do Sol;

"Carícias das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves
"Não me leves para o mar!...

As correntezas da vida
e os restos do meu amor
resvalam nessa descida
como a da fonte e da flor.

Soneto VI - De: A rua dos cataventos (Mário Quintana)

Na minha rua há um menino doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
junto à janela, sonhadoramente,
ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro em frente,
que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
o sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
não canta nada na manhã sonora,
e o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora
Pra alminha boa do menino doente.