O pneumologista Edson Nunes, um dos médicos que atendem os
jovens feridos na tragédia da boate Kiss, não conseguiu segurar as lágrimas ao
falar sobre o estado de seus pacientes no Hospital de Caridade Astrogildo de
Azevedo, localizado no centro de Santa Maria. Sentado à mesa, com roupa à
paisana e um estetoscópio enrolado no pescoço, pronunciou as primeiras palavras
da entrevista com a voz embargada e os olhos marejados, mas se segurou e
continuou a conversa. No fim, no entanto, o choro não pôde ser contido, e
levantou-se abruptamente, desculpando-se, e sem conseguir se despedir. Mesmo os
médicos, habituados a situações difíceis no cotidiano hospitalar, têm se
rendido às emoções provocadas pela cruel realidade das Unidades de Tratamento
Intensivo (UTIs), onde se encontram os jovens feridos em estado crítico.
— A pior coisa do mundo é um pai enterrar o filho — diz
Nunes, ao lembrar que há três semanas um de seus filhos esteve na Kiss.
Apesar de experiente, com cabelos grisalhos, o médico conta
com ar espantado como um dos três pacientes de sua UTI, uma das cinco que
possui o hospital, tem reagido à fuligem alojada em seus pulmões:
— Ele já expeliu quase meio copo pequeno de picumã (uma espécie
de fuligem), sai aquilo preto, sai na tosse.
O sintoma é consequência de uma pneumonite química, causada
pela inalação de fumaça e de fuligem nos pulmões, a principal preocupação dos
médicos em relação aos feridos. Nunes relata o caso de um amigo, que ao
exagerar na hora de tentar acender um churrasco, aspirou fumaça, e queimou sua
árvore brônquica.
— São poucos os que apresentam queimaduras externas, e a
grande maioria é sem gravidade. Mandamos dois pacientes para Porto Alegre, um
deles com 30% da superfície do corpo queimada. E são todos guris, umas
crianças, entre 20 e 25 anos — volta a lamentar, também abalado pela morte do
filho de uma enfermeira do hospital, que estava no incêndio com a namorada.
Primeiro caso de insuficiência renal
Muito além da tosse negra, a pneumonite química pode causar
infecções oportunistas — que se aproveitam do frágil mecanismo de defesa do
doente —, desidratação, insuficiência renal e dificuldades respiratórias, pela
incapacidade na troca de CO2 por oxigênio.
— Aqui numa UTI já tivemos o primeiro caso de insuficiência
renal — conta ele.
Segundo o médico, as primeiras 72 horas são fatais para
pessoas que inalaram fuligem, que se sentem bem, mas que poderão piorar nesse
período.
— Acredito que a maioria dos jovens que tinham que
apresentar alguma complicação já o fizeram. Alguns se assustam com uma tosse e
vêm ao hospital, angustiados, e os mantemos aqui para acalmá-los, mesmo que não
apresentem sintomas de pneumonite.
Edson Nunes contou que no dia em que chegou ao hospital para
atender os primeiros feridos no incêndio, foi cumprimentar um colega, com quem
havia se formado na faculdade, e então soube que o filho dele havia morrido na
tragédia. Ao lembrar desse momento, desabou em lágrimas, e interrompeu
repentinamente a entrevista.
Coordenadora das UTIs do Hospital Caridade, Cristina Boeira
é solicitada a toda hora pelos médicos e enfermeiras. Segundo ela, dois jovens
haviam sido internados na noite anterior com sintomas de tosse que sinalizam
uma pneumonite. Ele evita fazer prognósticos sobre as chances de seus
pacientes.
— Por enquanto, o estado é crítico e estacionário.
Atualmente, 19 necessitam um cuidado maior — disse, sem entrar em mais
detalhes.
O médico Henri Pansarde, especialista em problemas de rins,
soube da tragédia pelo Facebook logo cedo pela manhã de domingo, e sem pensar
correu para o Centro Esportivo Municipal, o Farrezão, para onde foram levados
os corpos das vítimas do incêndio, para auxiliar no que fosse possível e também
se cadastrar para o atendimento dos feridos.
Ao adentrar no recinto em que estavam estendidos os corpos,
confessa que teve que pedir ajuda.
— Quis entrar junto com um psiquiatra, no caso de precisar
de algum suporte na hora. Mesmo para nós, médicos, que estamos acostumados com
a morte, era uma situação diferente.
O médico ajudou parentes no reconhecimento das vítimas, e
admitiu que foram momentos bastante difíceis.
— Nunca vou me esquecer de uma jovem que possuía uma
tatuagem no braço, mas que era impossível de ver por causa de queimaduras, e o
rosto estava preto de fuligem, com a boca desfigurada. A família não pôde
reconhecê-la, e teve de ser levada para identificação por papiloscopia.
Em outro caso, conta ele, uma menina se recusava a
identificar o irmão, voltou e pediu para vê-lo novamente, não querendo
acreditar que estava morto.
— Depois de cinco ou seis horas lá dentro, tive que dar uma
saída — disse.
Seu filho, igualmente médico, trabalha no Hospital
Universitário de Santa Maria, que também acolhe feridos do incêndio na boate
Kiss.
— Lá também há casos de infecções por inalação de fumaça. E,
desde o dia da tragédia, 25 jovens já foram internados tardiamente com sintomas
de pneumonite. Não dá para imaginar o que essas pessoas viveram dentro daquela
boate.
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Para juristas, donos da boate Kiss deverão responder por crime de homicídio culposo
Especialistas em Direito ouvidos pelo GLOBO afirmam que tudo
indica que os responsáveis pelo incêndio da boate Kiss cometeram o crime de
homicídio culposo (quando não há intenção de matar). Neste caso, se forem
condenados, pegariam no máximo quatro anos e meio de detenção. Os juristas
acreditam, no entanto, que vai haver um debate na Justiça sobre se caso é de
homicídio culposo ou de homicídio doloso, que prevê penas maiores.
O homicídio culposo fica caracterizado quando há
negligência, imprudência ou imperícia do autor do crime e quando não houve a
intenção de matar. No entanto, segundo o professor de Direito da PUC-SP Carlos
Kauffmann, o Ministério Público pode entender que o caso foi de homicídio
doloso caso vislumbre a presença do dolo eventual. O dolo eventual ocorre
quando o acusado assume, conscientemente, o risco de o resultado (no caso da
Kiss, a morte e a lesão corporal) acontecer. E ainda: apesar de não querer o
resultado, o acusado não vê nenhum problema nisso, caso ele aconteça.
Na opinião do advogador e professor da Faculdade de Direito
Penal da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) Filipe Fialdini, o dolo
eventual presume que houve uma indiferença do autor em relação ao resultado da
sua conduta. Para Fialdini, aparentemente não foi o que aconteceu no caso dos
sócios da boate Kiss, pois um deles estava na casa noturna e se feriu no
incêndio.
— Não me parece que houve essa indiferença porque os
proprietários da boate estavam na boate. Um deles até foi internado. Seria um
dolo eventual de suicídio? Ele queria se suicidar? Não acho que seja o caso. A
mesma coisa acontece com relação aos integrantes da banda. Nada indica que eles
queriam se suicidar. Então não acho que seja o caso de dolo eventual. Tudo
indica que o crime é culposo — Filipi.
Para o advogado e professor da faculdade de Direito da
Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) Roberto Soares Garcia, em casos muito graves,
há uma tendência de as pessoas desejarem enquadrar a situação no caso de dolo e
não de culpa, para que a pena seja mais alta.
— Uma omissão de dever de cuidado, ainda que muito intensa,
não vira dolo eventual. Se os proprietários descuidaram de uma regra, eles
podem ser condenados por crime culposo, ainda que a culpa seja intensíssima. A
menos que haja uma reviravolta, este é um caso de crime culposo — disse Garcia.
Segundo Garcia, caso sejam condenados por homicídio culposo,
os responsáveis podem pegar pena de no mínimo 1 ano e dois meses até 4 anos e
meio, já considerando neste total as 231 mortes e todas as lesões corporais. De
acordo com o professor da FGV-SP, isso significa que eles podem ter que cumprir
pena alternativa (prestando serviços à comunidade, por exemplo) ou ficarem
presos em regime semiaberto.
Em um caso semelhante à da boate Kiss, os condenados pelo
incêndio da casa noturna Canecão Mineiro, em Belo Horizonte — em que sete
pessoas morreram e 300 ficaram feridas em 2001 — tiveram que cumprir pena de
prestação de serviço à comunidade.
O jurista Roberto Delmanto Júnior acredita que é provável
que o Ministério Público tente enquadrar os responsáveis pelo incêndio por
crime com pena maior que o homicídio culposo — como o de incêndio com dolo
eventual que teve como resultado homicídios culposos — cuja pena pode chegar a
20 anos de prisão. O professor de Direito da PUC-SP Carlos Kauffmann disse que
o fato de ter sido pedida a prisão de sócios da Kiss e de integrantes da banda
é uma sinalização que o MP analisa a possibilidade de ter havido dolo eventual
no caso.
De acordo com os juristas, é muito difícil punir algum
integrante da administração pública (seja do Corpo de Bombeiros, seja da
prefeitura de Santa Maria) criminalmente pelo incêndio e pelas mortes, apesar
de isso ser possível. Segundo Delmanto Júnior, é preciso provar que o
integrante do poder público era omisso e consciente dos riscos. A simples
omissão e não fiscalização da boate não é o suficiente.
— A omissão precisa ser consciente. Para poder imputar um
crime grave como esse a um funcionário público é preciso provar que ele esteve
lá, fez a vistoria, viu que havia perigo e mesmo assim fechou os olhos e deixou
o local funcionar. Não é simplesmente “não foi ver porque tem excesso de
trabalho” — diz Delmanto Júnior.
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