sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Espírito do Natal

Numa das ruas mais quietas do bairro, quase encostado à histórica ponte, tinha um casebre onde morava o velho Quaresma.
Ele costumava sair de madrugada empurrando uma carroça que ao longo do caminho enchia de papel velho. Voltava para casa por volta do meio-dia após vender sua carga ao depósito da fábrica de celulose.
Ninguém o via mais até o dia seguinte e isso constituía um grande mistério, especialmente para as crianças. Algumas pensavam até que ele não era desse mundo.
No fundo do casebre havia uma pequena horta, escondida atrás de um alto muro gretado. Lá o velho Quaresma plantava legumes e hortaliças, lá olhava crescer os cachos de bananas, as primeiras laranjas, as folhas de alface, os tomates. Lá ele vivia sua imensa solidão.
Ninguém visitava o velho Quaresma, ninguém falava com ele. Dir-se-ia que fazia parte dos muros gretados, das janelas e portas encardidas pela poeira dos anos. Mais que uma pessoa ele era uma lenda representando o fim lento das coisas.
O jovem carteiro que entregava correspondência naquele bairro, não lembrava de ter entregue jamais um cartão de Aniversário ou de Boas Festas para ele. Será que o velho Quaresma tinha ultrapassado qualquer possibilidade de relacionamento humano?
O Natal estava chegando e trazendo em seu bojo a mensagem de paz e fraternidade entre os homens. O carteiro vivia assoberbado de trabalho com sua bolsa de couro repleta de cartas e cartões. Dois dias antes da Festa, após uma copiosa entrega, parou no limiar da ponte olhando a porta fechada do casebre. Ele sabia que o Quaresma estava lá dentro.
O carteiro tinha muita fantasia e imaginava o velho sentado numa banqueta ao lado da morte.
Alguns meninos e meninas passaram pedalando e o eco de seus gritos e risadas pareciam esbarrar contra o muro gretado do casebre. O carteiro, afanosamente, procurou entre as cartas que tinha ainda na bolsa. Quem sabe, no fundo poderia encontrar um cartão, tão pequeno ao ponto de ter escapado à sua atenção. Um cartão endereçado ao velho Quaresma. Mas não havia.
Então um pensamento fulmíneo atravessou-lhe a mente. Rápido, montou em sua bicicleta, acabou o resto da entrega e foi para casa.
Aí preparou um cartão de Natal enfeitado com gránulos prateados, escreveu no envelope o endereço e voltou para a rua onde o velho morava. Bateu de porta em porta pedindo a todos os meninos que encontrava para assinar o cartão. - "Vamos lembrar o velho Quaresma" - dizia o carteiro - "o Natal vem para ele também".
Recolheu cinqüenta assinaturas.
Mais tarde, aproximou-se do casebre, jogou a carta debaixo da porta e sumiu.
Quando o velho Quaresma viu aquele retângulo branco no chão, ficou surpreso: Seria talvez uma burla? Um gracejo de mal gosto?
Cautelosamente apanhou o envelope e, após abrí-lo, sentiu uma onda de calor subir em sua face emperdenida. O cartão dizia assim: "Para o mais velho amigo da cidade, os votos celestes de amor e paz de todos aqueles que em silêncio te amam".
Embaixo, as cinqüenta assinaturas de meninos e meninas transformavam aquele humilde cartão numa página de glória.
O velho Quaresma apoiou-se à parede e chorou silenciosamente. Pela primeira vez deu-se conta que não morava numa região desolada, repleta de papel velho, mas na terra dos homens. Agora precisava preencher aquele grande silêncio que durava há muitos anos! Por isso retirou de uma gaveta suas pequenas economias e saiu às pressas de casa.
Os transeuntes ficaram admirados em ver o velho Quaresma andar até o supermercado naquela hora insólita.
No dia de Natal algo inusitado aconteceu no casebre: A calçada estava bem varrida, as janelas e as portas escancaradas. Um galho de laranjeira, erguido num caixote no meio da casa, parecia uma verdadeira árvore de Natal, com velinhas e enfeites de papel colorido. E, grande maravilha, o velho Quaresma de camisa limpa e barba feita, distribuindo bombons e bichinhos de plásticos a todas as crianças.
Muita gente juntou-se na frente do casebre..Houve abraços e salvas de palmas. O jovem carteiro, apoiado ao anteparo da ponte, sentiu-se gratificado e feliz: afinal, ninguém pode viver para si mesmo.
O espírito do Natal, como o som de uma flauta, expandía-se em volta do casebre e tomava conta do bairro. Jesus pequenino renascia outra vez para todos.
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Extraído do Jornal Diário de Natal - edição de 22 de dezembro de 1991

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